Dom Quixote é uma figura que
pertence ao imaginário cultural do Ocidente - um esguio cavaleiro/cavalheiro
idealista, visionário e sonhador, acompanhado em suas aventuras pelo seu
rotundo companheiro/escudeiro Sancho Pança, representação da realidade crua e
do senso comum, mas também da amizade possível entre os diferentes. A escritora
francesa Dominique Aubier propôs que Miguel de Cervantes teria sido um marrano
que nomeou seu herói (Quijote, em
castelhano) com base na palavra aramaica q’shot,
qeshot, que significa “verdade” ou
“certeza”. Pode-se dizer pelo menos, citando Cervantes, que na obra Don Quijote, “a arte, imitando a
Natureza, parece que ali a vence”, e sugerir que a obra/a arte (a exemplo da
vida, sob uma perspectiva metafísica) tem uma verdade que transcende toda nostalgia,
ironia ou fantasia. Considerada em maio de 2002, por uma comissão internacional
de críticos literários, como o melhor livro de ficção já escrito, Don
Quijote já inspirou inúmeros artistas, que não desapontaram o engenhoso
fidalgo que havia profetizado nas páginas de Cervantes: “Feliz idade e feliz século aquele onde sairão à luz as
minhas famosas façanhas, dignas de entalhar-se em bronzes, esculpidas em
mármores e pintadas em telas para a memória do futuro”. O multiartista curraisnovense/cosmopolita
Assis Costa resolveu dar a sua contribuição para testar os limites da
quixotesca(?) profecia, experimentando uma nova forma de arte, que bem
poder-se-ia chamar “vinarela” (pintura com “vinum”, e não com “aqua”),
como forma de representar cenas da vida e da tradição do Quixote. Muitas uvas,
safras e taças depois, eis que se cumpre um outro vaticínio – este, do
historiador e professor gaúcho Voltaire Schilling, que percebeu que o “soberbo
doido” Dom Quixote “está vivíssimo” nos dias de hoje, em prontidão para enfrentar o gigante Briareu (não
importa se disfarçado de moinho de vento ou de torre de televisão!) e espantar
as injustiças. Assis Costa veste a armadura do Quixote e, empunhando o pincel
no lugar da lança (e segurando na outra mão uma taça), confronta as adversidades
da mesmice, da banalidade e da rasteireza na planície da arte contemporânea,
recusando o óbvio sem descuidar do clássico e exaltando o figurativo com as
cores do onírico. Com Assis e Quixote combatemos o bom combate pela arte, que persevera
ao final. E nada mais oportuno que celebrar essa vitória com um bom vinho...
Edrisi Fernandes
Médico e apreciador do belo e do sublime;
Prof. da Especialização em Estudos Clássicos da UnB e
Prof. Colaborador do Mestrado em Filosofia da UFRN