2 de junho de 2015

"Memórias de águas perdidas"


AST - 2015
Acervo particular


Descrever uma obra e interpretá-la pode ser visto como uma metodologia eficaz de apreciação artística. Contudo, Michael Baxandall reflete essa "impossibilidade" da linguagem verbal ao tratar da fonte visual, com suas características particulares, tanto materiais como subjetivas. Há de se entender que ler uma obra de arte, é sempre um desafio para quem escreve, pois jamais podemos alcançar o que o artista quis demonstrar verdadeiramente com a sua arte, e quanto mais afastado no tempo, maior essa dificuldade. Todavia, tomo este desafio, a fim de discutir alguns motivos, enunciados simbólicos, vislumbrados nessa pintura do artista Assis Costa. Um retrato de um vaqueiro, banhado por uma luz solar que impálida sua face, assim como Hopper iluminava seus personagens da cultura norte-americana.  "Memórias de águas perdidas" se enquadra dentro de uma tradição pictórica de representação de tipos nordestinos, incrustados no imaginário coletivo. Porém, ele pode ser entendido como uma representação que sutilmente desafia o senso comum, mesmo sendo este um vaqueiro -  signo de virilidade e força  sertaneja; sua postura, seu olhar, é auto-reflexivo, uma figura clássica, sensível, que quebra a imagem tradicional representativa do universo rural. A paisagem multicolorida não é apenas pano de fundo, são os sentimentos dúbios de uma realidade hostil e doce, seu olhar contemplativo sobre seu mundo interior e externo, mostram contradições de uma ordem representacional, um quadro que dialoga com a convenção, questionando-a sorrateiramente. O conjunto das figuras, homem e cavalo, constitui-se em harmonia e integração, seu corpo ligeiramente inclinado, traz as referências clássicas e do modernismo com Modigliane. Sua roupa de couro, ricamente adornada, com arte talhada na pele dos animais, é a mesma manta que revestia os homens nas cavernas, era sua proteção contra os perigos da mata. Toda a obra sobretudo, envolve um sentimento de amor, das solitárias andanças dos vaqueiros, entorpecidos pelas luz e por mágoas inconfessáveis presas numa paisagem. 

Ilka Pimenta, 02 de junho 2015.